Óvulos


Você atende o telefone (dessa vez esqueceu de tirar do gancho depois que teve que ligar pra marcar uma consulta).

Alguém te xinga do outro lado e você não faz a mínima idéia de quem seja. Mas como é dia de sorrisos resolve fazer sorrir.

Resolve brincar de mocinho e bandido, pensa na panela de pressão prestes a explodir e deixa o feijão que está cozinhando pro almoço transbordar pelo fogão, só de sacanagem.

E responde pro cara do outro lado:
- Você está feliz agora? Meu feijão transbordou. Terei que abrir uma lata de sardinha.

(um segundo de perplexidade silenciosa do outro lado)

- Bem que disseram que você é totalmente louca mesmo, sua piranha!

Agora você se zanga. Não gosta que não riam de suas graças, afinal isso requer uma senhora dedicação humana de sua parte.

Desliga o telefone, come seu pão com sardinha e depois vai ao médico.

- Boa tarde! E então... me diga o que você está sentindo.

- Nada que eu não entenda, na verdade, queria só que me desse umas receitas. Os nomes estão aqui, é só assinar e carimbar, doutor.

Preferia que esse também me chamasse de piranha. Ficou vermelho, inchado, mas usou toda sua ira concentrada num discurso sobre o perigo da auto-medicação e praticamente diagnosticou uma hipocondria latentis. Numa eternidade de relógio que daria pra cozinhar uma grande feijoada pra duzentas pessoas ou distribuir mil sandubas de sardinha pra mendigos.

Você começa a perder a paciência de paciente.

- Ahh Doutor, já sei, foi o senhor que me ligou xingando pela manhã e não quer assumir, não é?

(um segundo de perplexidade silenciosa doutoral)

- Minha senhora, que loucura é essa?

Você pensa em como é duro o dia de sorrisos; exige uma dedicação sobre-humana e agora se sente uma divindade praticamente.

- Pois é doutor, eu queria mesmo é me enrolar num novelo de lã e me desenrolar enrolando de novo, mas sem virar ovelha, entende?

Nossa! Ele sorriu finalmente, ele sorriu e me prescreveu uma tonelada de comprimidos.

- Muito bem, agora percebo melhor seus sintomas.

E olha pelo canto do olho seu diploma emoldurado com ar de quem faz uma oração agradecida, aliviada como aquela primeira mijada matutina que deu na boca do otorrinolaringologista enquanto olhava pra foto da esposa na penteadeira ao lado da cama, a cirurgiã-dentista.

Que nojo!

Finalmente te fiz alegre, hein Doutor Tristezinha..

Ele só não sabe que vou tomar com conhaque, cozinhar mais feijão pro almoço de amanhã e estourar algumas panelas de pressão em 24 horas.

É o meu prazo pro dia de sorrisos quando reencontro um grande amigo, aquele Cão com óvulos cantantes na garganta que me faz sorrir no meio da cidade imunda dos shoppings!
À propósito, sou chocólatra..


Quem você pensa que é?



- QUEM VOCÊ PENSA QUE É PRA NÃO ME OUVIR?

- O que?

- É isso aí mesmo que vc AGORA ouviu!..
...

Foi assim que tudo aquilo começou. Embora essas palavras foram não ditas, elas voaram entre nós. Mas quem seria eu e quem seria você naquela conversa?

Não, não pensem que estou em pleno surto esquizofrênico (ou pensem e fodam-se), isso só acontece às terças, o dia em que resolvo amortecer todas as dores do mundo. Nas costas e subindo Notre Damme. Quase um camelo.(refugo de novo cristão na tal pós-modernidade que é quase idade média).

Mas não foi o caso. Só bebi água suficiente para provar que sou um ótimo camelo, testar minha resistência e seguir em busca do maior oásis. Te vi assim. Mas na lâmpada só cabe um gênio, o seu. O meu eu dei descarga junto com o ranço socrático faz muito tempo. "Só sei que nada sei"..AHHH VAI TOMAR NO TEU CU, OTÁRIO!(espero que assim você finalmente ouça).

Sua cabeça, seu machado. A minha, deslocamento...

Tudo bem que meu corpo, essa camada de gordura acumulada que cobre nervos, me trai. É, ele me trai sim. Acontece que também disso tiro um puta prazer. Pego leis de gravidades insuspeitadas e as detono, juntamente com todos os sintomas que uma pessoa crônica como eu suportaria. Outros já teriam se borrado nas calças e dado um tiro no meio dos cornos na apresentação dos três primeiros: aniquilação, aniquilação e aniquilação. Mas você não contava que meu semi-auto-didatismo fosse deliciosamente mais saboroso: ele, além de provar a mesma inutilidade dos ritos, os abandona de livre escolha, tédio e pavoneamento.

Que foi? Pensou que sugeriria nomes encontrados em bulas de remedinho de farmácia? Me procura que te mostro realmente o peso do meu silêncio e te injeto todas as doenças das quais você foge como o covarde vendido que é.

Afinal, sou quase-feia, quase-bonita, quase-velha, quase-menina, quase-puta, quase-santa, quase-pobre, quase-rica, quase-mulher, quase-homem e continuo um pavão misterioso e você, porra, você continua o mesmo medíocre e saudável asno que sempre foi.

Quem é você e quem sou eu nessa conversa?

Responda você agora..