Muro em branco



Véspera de Natal em pleno sec.XXI.
Ela acordou com aquela sensação estranha outra vez. De ser um inseto.
E como das outras vezes, repetia para si mesma "Eu fiz o que tinha que fazer, eu fiz o que tinha que fazer".
O telefone toca insistentemente e assim ficará até morrer a chamada. Olhou irritada para o aparelho que nesse momento parecia uma extensão do seu rastejar intermitente.
"Eu fiz o que tinha que fazer, eu fiz o que tinha que fazer!".

Sua expressão suavizou-se lembrando do quadro de Duchamp e sua graciosa prova de co-existência: pés que não são amputados mas delicadamente possuem vida própria.
Assim, tirou seus pés- ainda sombra da estrada- e capturou a beleza por alguns instantes na calçada. "Minha vida andaria a sua vida".

Sentia-se agora uma ave de rapina cega e linda, correndo tanto dentro daquele segundo que quis eternizá-lo.

Suicidou-se naquele dia, deixando num bilhete, um muro em branco.

"Quando a gente fica exausto, pelo motivo que for,
ficamos mais bonitos.
Mas como pedra.
A estátua vive no relâmpago.
É o céu que fazemos."

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