Azul em rosa



Embaraçamentos em muitos dedos longos de nós.

Desde meninas eram assim e não sabiam exatamente porquê. Não que isso as incomodasse de fato; a indiferença forçosa as alimentava de tal maneira que à distância guardavam uma amorosidade de baú em dia de limpeza.

Sentiam-se protegidas assim, envoltas naquele arremedo de nostalgia, encontrando-se entre dobras antigas e estranhando algum botão gasto demais que pulasse inesperadamente ao toque das mãos. Uma vez por ano acrescentavam ou retiravam um item dos relicários de imbúia, um com arabescos de tinta rosa na borda; o outro em azul. Cada uma em sua casa, com data previamente combinada e resguardas na distância geneticamente elaborada, enlaçavam a perenidade assim. E esta era uma regra inalterável.

No dia do encontro telefonavam uma à outra, marcavam a visita simultaneamente aos tais baús, cada uma em sua casa, mesmo morando as duas no mesmo quarteirão.

- Ontem sonhei em rosa.
Um leve arremedo de suspiro do outro lado da linha foi contido a tempo pela resposta.

- Então será hoje.

Nada mais diziam, apenas desligavam o telefone e encontravam-se nas brumas daquelas raízes fossilizadas. Ritualisticamente, o momento as enfeitava desse jeito há mais de quinze anos.

Enquanto a primeira preparava o banho quente, a segunda tomava chá de hortelã, já sabendo que seria assim e discordando as duas da ordem desses acontecimentos, pois quanto a tomar o chá antes do banho sempre houvera divergência explícita entre elas.

O relógio contou muitas horas, como botas pisando um gigante, e adiantou-se ás burocratas senis.
- Ontem sonhei em azul.
Dessa vez não houve ar que paralisasse o gemido.

- Mas..como? Há alguns dias nos encontramos e ainda neste ano que corre!
Um ar de contrariedade num segundo mudo.

- O que você sugere? Que não sonhemos mais ou mudemos todo o processo?

- Não tente trazer-me riso à cara, sabe que isso me irrita profundamente!

- Não tentarei.

- Troquemos os baús então, hoje mesmo mandarei o meu à sua casa. Isso arrematará seu sonho e talvez o regularize novamente.

E assim fizeram. O da mais nova era mais velho e o da mais velha, pesado. Por isso combinaram de abrirem as tampas somente quando a que mais chorasse sem aviso, sorrisse. O sinal seria um toque ao telefone, desligando a seguir.

Toque dado, baús trocados, tampas abertas..puseram-se a vasculhar lá dentro, no início com certo desprezo ao fetiche, depois com iconoclasta voracidade.

Em rosa: alguns recortes de revistas com frases ao meio coladas em pedaços de cortiça; pedaços colhidos de páginas policiais; um frasco de perfume vazio; um retrato de um casal desconhecido; cuidadosamente envolvida num saco transparente, uma toalha nunca usada, em bordado inglês; uma boneca quase careca; um broche.
No fundo falso, uma cópia de pintura antiga e barata sem assinatura.

Em azul: o mesmo retrato de um casal desconhecido, um lençol amarelado com uma enorme mancha de vinho que ainda teimava em impregnar todo o interior; cartas de baralho faltando coringas; uma tesoura enferrujada; almofada grande sem enchimento e um conjunto de colar e brincos de pérolas tortas.
Uma ilustração em tamanho reduzido de um pintor famoso, sob o fundo falso.

Uma delas fechou a tampa, não sem antes rasgar um dedo com a tesoura enferrujada e acrescentar gotas de sangue pingados ao baú da outra, que ao recebê-lo no dia seguinte, tremeu.

Outrora nunca lhe passara pela cabeça, que o chá que a irmã sempre tomava antes do banho, fosse frio.

Com as faces alagadas de vermelho, livrou-se da pintura sob o fundo falso, despediu-se dos sonhos do azul em rosa e mudou de endereço.

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3 comentários:

Paulo Castro disse...

Você está pronta pra maternidade. Seja mãe novamente. Eu gostaria que vc me contasse essa história antes que eu pudesse - cada vez mais difícil - adormecer.
Quando falo de maternidade, falo de várias & várias coisas boas, ótimas, entre elas, uma maturação, melhor que maturidade, maturação de fruta, de feto, de soberbo nascer uma forma ÍNTEGRA de texto: nada sobra, nada falta. Passa a régua. Há muito tempo, confesso, achava que sempre alguma coisinha sobrava em seus textos, um ovário policístico da linguagem. Acabou. Aqui.
Beijos.
º

ºª disse...

lembrei de uma das aventuras de simbad. uma em que um anão o agarra pelas costas, num momento de distração e boa-fé do marujo, e não o solta mais, obrigando-o a carregá-lo pela noite e pelo dia.neste seu texto, simbad embriaga o anão, recolhe um tesouro conquistado e volta ao mar em uma embarcação. o anão olha para as próprias pernas e lembra que são do mesmo tamanho das de simbad. simbad e o anão têm um mesmo fundo falso. e um destino diferente. o chão do anão é de areia movediça. o chão de simbad é de mar movediço. o que parece, é. a riqueza de simbad são os olhos. não as pernas. não o chá. gelado, na verdade. e ruim.

Anônimo disse...

Um lugar surpreendente de se achar no meio de tantos lugares-comuns.
Mil cores!!!
Bjo da Dani(já cobrando a cerveja)hahaha