Se não fosse pelo vento inesperado que entrou por debaixo da porta naquela tarde meu destino seria outro.
Sim, é isso mesmo, destino. (poderia usar alguma outra palavra que me lembrasse convicção? Não sei, talvez conveniência). Nos dias em que o pão na padaria sai inesperadamente bom (pra mim pão bom é aquele com uma casca crocante) acredito em tudo que me faça ter vontade de comer pão. Nos outros desacredito até nos sabores mais excêntricos e vejo o insosso que é qualquer desejo. Só fumo, bebo e anoto na esquina do meu nariz com a testa. Incrível é como ninguém percebe o que está escrito em letras saltando dos olhos. Assim meu cinzeiro vai enchendo e a garrafa esvaziando.
Vou novamente comprar pão e ele não veio bom. E assim os dias se alternam e eu, maior vício. Tiro o telefone da parede, desligo o celular e todos os eletrodomésticos. Não quero ser encontrada nem pelos pratos e talheres. Por isso não como hoje, saboto.
Então minha vizinha ao lado começa a gritar meu nome depois de bater na porta e não ser atendida. O que será que ela quer dessa vez? Uma xícara de açúcar, minha cuba de gelo extra? Ontem foram dois ovos pra completar uma nova receita que queria experimentar.
Ela se orgulhava de nunca precisar fazer uma lista antes de ir ao supermercado (afirmava categoricamente sempre que vinha e pedia esses pequenos ítens). Eu sorria para ela nessa hora, entendia e a atendia em tudo (respeito certos orgulhos explicitamente incoerentes). Assim ficamos cúmplices pela eternidade sem precisar de nenhum plano mirabolante de assalto a banco(coisas de quem tem casa própria e não pretende mudar de endereço).
Enquanto ela grita fico lembrando de sua fisionomia de professorinha de escola primária. Acho que é por isso que não consigo negar nada a ela, que me lembra da minha primeira "tia", aquela que sempre me via sentada na hora do recreio muito quieta e me perguntava coisas absurdas só para demonstrar que se importava . "O que você trouxe para lanchar?", "Qual a brincadeira que mais gosta?". E eu pensava "Ela parece a princesa daquele conto de fadas, só que usa óculos".
Foi por isso que implorei durante meses à minha mãe que me levasse novamente ao oftalmologista, queria usar óculos de qualquer jeito. Minha mãe marcou a consulta pra ver se eu finalmente parava de encher o saco. "Menina, você puxou a alguém, só não sei a quem". Fomos e o médico acabou me receitando mesmo um óculos como eu queria, fingi que não enxergava direito algumas letras. Asssim descobri aos sete anos como era fácil conseguir algumas coisas que me negavam, era só dizer a coisa certa. Meu primário foi todo assim. Por isso fui a única a completar o álbum de figurinhas da minha turma e a ser convidada pro aniversário na casa da tia.
O problema é que todos começaram a me perseguir na hora do recreio, querendo ouvir as coisas certas enquanto se lambuzavam na comilança infantil.
Aquilo me irritou demais e passei a procurar cantos escondidos da escola que ninguém conhecia. Vi que era difícil, tudo era tão bem vigiado. Mas não impossível."Passarei a lanchar no banheiro do salão de ginástica". Fui crescendo dentro desse banheiro. Tanto quanto um mamute. Até que um dia saí de lá querendo derrubar todos no meio do pátio.
Comecei a desdizer de todas as coisas certas. Fui parar na enfermaria, depois na orientadora. "Fala comigo, garota, o que há de errado com você? Eu posso ajudá-la". Fiquei impertubável e falei: "Não dá, você não usa óculos". Ela ligou pra minha mãe e perguntou se não era o caso de me levar ao oftalmologista pra fazer uma revisão.
Minha mãe sorriu e disse: "Não, é que ela puxou a alguém, só não sei a quem".
Nesse dia ela inventou uma mentira no trabalho e almoçamos juntas. Descobri que ela também falava as coisas certas quando queria. Com pudim de leite como sobremesa e ela me falando que sempre detestara os outros tipos de pudim.
Nesse estalo de tempo percebo que a minha vizinha parou de gritar e corro pra abrir a porta. Ainda bem, ela já estava desistindo de bater e virada de costas. "Ah, então você está mesmo aí não é?" (diz ela e sua cara de professorinha inabalável). E me estende metade de um bolo de cenoura, receita nova, segundo ela.
"Está bem, princesa dos contos de fadas, vou fazer um café e comeremos a metade do bolo juntas então".
Se não fosse pelo destino inesperado que entrou por debaixo da porta naquela tarde aquele vento seria outro...