Afago..




Disse que tinha pressa.

Por isso nem acendeu o cigarro, apenas o deixou entre os dedos para neutralizar a chama antes que queimasse. Queria adiantar-se, ela e seus novecentos motivos.

Não tomou café da manhã, assim pouparia a fome e seu aparelho digestivo. Mas achou que era pouco ainda, queria sabotar a máquina completamente.

Esvaziou os armários da cozinha, doou todos os alimentos; abriu a geladeira e despejou todas as sobras de comida no lixo.

Caminhou pela casa farejando vestígios, já sabia que em algum lugar haveria migalhas de apetites antigos deixados pela metade por puro descaso ou tédio. Desprezo.

Assim embrenhou-se por lá durante horas como um bom rastreador faria dentro do próprio território.

Corredor. Uma lâmpada queimada e deixada assim há dois anos. Sorriu da premonição. Riscos na parede em diagonais e retângulos deformados. Saiu da caverna.

Quarto. O forro do teto era baixo e uma mancha de infiltração enorme em cima da cama que nunca secava fazia seu nariz tremer levemente. Espirros.

O sexo mais lindo estava cruzando agora com seus novecentos motivos. Abortou todos os filhos que vieram deles também.

Banheiro e pia aberta assombraram suas narinas treinadas. Deixaria assim, sustos eram bons e atiçavam-lhe a glândula mais ainda. Sentiu muita fome, olhou-se no espelho e depilou-se toda. Dos pés a cabeça. Frio. Sorriu. Gostava do frio desse jeito. Gostava? Tirou o sorriso da cara. "Então era isso, não havia como escapar do grande afago?"

Foi atrás do cigarro e queimou os novecentos motivos. Novamente o sorriso. Acendeu, fumou e partiu em disparada roendo todos os ossos, cadela amorosa que era.