Disse que tinha pressa.
Por isso nem acendeu o cigarro, apenas o deixou entre os dedos para neutralizar a chama antes que queimasse. Queria adiantar-se, ela e seus novecentos motivos.
Não tomou café da manhã, assim pouparia a fome e seu aparelho digestivo. Mas achou que era pouco ainda, queria sabotar a máquina completamente.
Esvaziou os armários da cozinha, doou todos os alimentos; abriu a geladeira e despejou todas as sobras de comida no lixo.
Caminhou pela casa farejando vestígios, já sabia que em algum lugar haveria migalhas de apetites antigos deixados pela metade por puro descaso ou tédio. Desprezo.
Assim embrenhou-se por lá durante horas como um bom rastreador faria dentro do próprio território.
Corredor. Uma lâmpada queimada e deixada assim há dois anos. Sorriu da premonição. Riscos na parede em diagonais e retângulos deformados. Saiu da caverna.
Quarto. O forro do teto era baixo e uma mancha de infiltração enorme em cima da cama que nunca secava fazia seu nariz tremer levemente. Espirros.
O sexo mais lindo estava cruzando agora com seus novecentos motivos. Abortou todos os filhos que vieram deles também.
Banheiro e pia aberta assombraram suas narinas treinadas. Deixaria assim, sustos eram bons e atiçavam-lhe a glândula mais ainda. Sentiu muita fome, olhou-se no espelho e depilou-se toda. Dos pés a cabeça. Frio. Sorriu. Gostava do frio desse jeito. Gostava? Tirou o sorriso da cara. "Então era isso, não havia como escapar do grande afago?"
Foi atrás do cigarro e queimou os novecentos motivos. Novamente o sorriso. Acendeu, fumou e partiu em disparada roendo todos os ossos, cadela amorosa que era.
20 comentários:
Pode-se fugir de tudo, menos de si... Pode-se destruir tudo, menos a própria essência... Sempre acabamos escravos dos desejos íntimos, estes a todo o tempo incorruptíveis em sua natureza corrupta.
Mais um belo texto, Grazzinha...
Da carne ainda nos sobra o osso.
Bem mais dudo por certo, mas ainda retem seu delicioso gosto.
Aya
Tia Grazzi, vc não se cansa de nos fazer pensar , nos mostra o lado que não queremos ver por não acharmos bonito, mas o teu jeito de mostrar essa realidade é belo o bastante, para encararmos a crueza dessa dor.
Não chega a doer menos, mas dói com arte.
muito legal. gosto do seu proseado. parabéns
Aroeira
Bom, mas você faz melhor!
Beijos
Anna
Por acaso matava 900 ao ler o seu presente.
Ruim com eles, mas sem...
NEM PENSAR
Obrigado pelo "Afago..". Nao posso pontua-lo, mas arte nao tem ponto e nem preco. Por isso..
um beijo.
haja osso pra essa garota dura de roer!
muito bom, Srta.Caninos afiados!
bjos.
Diante de novecentos motivos, o universo todo se descortina em nossa frente.
Afagos em forma de farelos se fazem estrelas. Galáxias.
A alma da gente se engravida por final.
Beijos
com certeza a líbido sexual fala mais alto , muito mais alto do que o tédio e a depressão
Parabéns Grazzy
Parabens pela elegegancia do Blog, un saludo Alessandra Leahr
Não fico sem tocar em fogo meus novecentos motivos q, por vezes, são mil e oitocentos e q, por vezes, e o fogo redentor de nem sei oq...mas sempre há oq, né Grazzi.
Amo.
Embora existam momentos em que a vontade de fugir do mundo é grande, ninguém pode escapar de si mesma e todo universo que há dentro de si.
Foi o que eu pensei ao ler esse texto, Grazzi.
Intenso e suave.
Como sempre...
Beijos.
muito beLO seu escrito amiGA graZZ,
um bJ por sua òtima menTE...NoiTe
é, não é à toa que tá entre as minhas escritoras prediletas.
sem rasgação.
saudades.
amor,
;*
ah, e como eu te disse antes: 'suas poesias são lindas, mas prosa pra qualquer bom escritor é bem mais gostoso.'
concorda?
mais beijos.
Vou roubar essa foto... =)
E vou te linkar... pode????
Gosto de ser escravo do meu desejo,mesmo que perverso e doentio.
Lindo texto, lindas es tu e tuas linhas.
RANSES
Engraçado.. tenho até medo de comentar....Acho que a solidão humana é algo impressionante... sempre estamos um pouco sós, não é mesmo??!! Nem tudo é desvendado pelo outro... só nós sabemos o que nos ronda.. baby.. querida.. bjs... e quando tem alguém para nos observar.. nos tornamos mais perigosos ainda...e temeroros.. de nós mesmos... ehhe
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